Tratado dos Corpos Periféricos

Anatomia da (de uma) ausência Duas semanas e sete horas. Na última vez chegaste em silêncio, a meio da noite, como um espectro que se esforça por atravessar duas dimensões irreconciliáveis. O teu hálito um ponto vermelho por debaixo do vidro que se iluminou por dois segundos. Não sei onde estás. Apenas posso acender o espaço/tempo que guardo no meu bolso e enternecer-me com a tua fotografia na orla do jardim a meio de um verão sem ano – não interessa o ano! -, um pouco mais jovem, mais tenso, mais cínico. Não respondes aos meus emails, não devolves as chamadas, tens o log das mensagens estacionado num universo que não existe. Vou perdendo a tangência do teu ser, a nitidez das feições, a memória da temperatura da tua pele. Aguardo mais uma hora, mais um dia, mais uma semana para que te anuncies transitoriamente. Basta-me um ponto vermelho seguido de dois segundos de luz. Amo-te!
Da inutilidade de acrescentar mais coisas ao mundo Nada é novo debaixo do sol, tudo se repete, a mão mais completa é a que está vazia, não se dilui, não se cansa, terminou a busca, é, simplesmente. Mas, imediatamente antes criou o objeto, mediou a mente, tirou algo dali, deixou aqui uma ilusão, quis superar-se, ser algo maior, uma forma de arte, cansou-se. No fundo, iludiu-se. Mudou somente o lugar das coisas.
O poema foi gentilmente cedido pela Maria Afonso. Do seu livro Todos os Silêncios, Lua de Marfim, 2014. https://autores-canalsonora.blogs.sapo.pt/maria-afonso-2883
Dos seres que o mundo cospe com desprezo Artaud, já louco, foi fotografado sentado na cama, no frio glacial do asilo. vestia um pijama de flanela ridículo e sob o pesado casaco de fazenda escondia as mãos para ocultar a lividez dos ossos. em surdina, tentando não cair, soletrei-lhe as interrogações do universo e ditei-lhe as minhas contradições. o que encontraste dentro do teu abismo? abandonado à febre dos sonhos quantas das novas leis se afogaram no teu caos? salvou-te a luz de mil sóis de bombas atómicas? …os homens rodopiam eternamente no teatro da crueldade pelo que podes agora descansar enquanto os percevejos que se reproduzem na tua cama geram gerações sobre gerações sem asas como as demais. devoraste esses pequenos seres na medida do deprezo que tinhas pelos homens ou, devido à fome que te consumiu desde o dia em que nasceste, aboliste a sua existência simplesmente.
vivo, num lugar que é de quase todos nós. habito um período da história, num território que foi atribuído a alguns. penso, num espaço onde só cabem parte dos cruzamentos possíveis. durmo num templo que é só meu. e volto a morrer num mundo que foi, é, e será de todos Este texto foi gentilmente cedido pelo Pedro Jubilot. https://autores-canalsonora.blogs.sapo.pt/pedro-jubilot-3131
Do estudo do impossível Devemos uma parte significativa da nossa condição pós-moderna a um dos mais admiráveis laboratórios de ideias e de experimentação do século XX: a Bauhaus de Weimar (e as que lhe sucederam). Entre os inúmeros exemplos do extraordinário destaca-se o Ballet Triádico de Oskar Schlemmer. O diagrama reproduzido corresponde ao percurso que os bailarinos deviam seguir no palco. Existe uma beleza irrepetível nestas coisas como se apenas pertencessem a determinado tempo e, apesar de intemporais, não caibam em mais tempo nenhum. O “poema” tem inspiração Dadaísta e Surrealista e, dito assim, inspira-se na vida, toda ela cheia de belezas e de dramas indecifráveis. A fotografia é uma das minhas favoritas. Para muitos, o corte da cabeça pode ser excessivo ou mesmo inaceitável mas, como todos sabemos, a força da fotografia reside em captar a beleza apenas de partes do real. O fotógrafo está sempre a excluir, a escolher ou mesmo a mutilar. Na verdade, nada nunca estará completo: nem as ideias, nem as palavras, nem as imagens. O espirito da Bauhaus residirá para sempre em todos os que pensam e experimentam sem receio de ferir o Mundo. Bailarina/modelo: Therese Karlsson. Fotografia obtida no âmbito do 4.º Festival Entrelaçados 2020 / https://www.dancenema.com
Dos corpos em rota de colisão À noite basta-me que acenda o diminuto círio da minha alma breve, um ponto do tamanho de uma estrela rompendo as trevas por entre as árvores silenciadas do bosque. Para vires ao meu encontro sem temeres o fim violento na coroa de um sol, para que me seja impossível cegar-te, para que nada queime as tuas asas de cotão. A tua coragem que admiro e as volultas do teu voo na elipse cada vez mais fechada da tua substância periférica em rota de colisão. E o momento em que o eco morre antes de entender a musicalidade da tua voz, quando nas mãos recebo a chuva sem peso do teu corpo em cinza.
Da incessante busca do ser O primeiro livro que me explicou um sentido para utopia foi o Triunfo dos Porcos (de Orwell também gostei de Na Penúria em Paris e em Londres). Christiane Vera Felscherinow, hoje com 58 anos, estremeceu a minha geração. Tanto o livro, como a longa-metragem (Wir Kinder vom Bahnhof Zoo). Bowie estava a voltar à terra e a tornar-se banal mas no filme ainda ressoa como um deus iluminado num altar. O Papalagui falou-me da importância de atravessar a ria em silêncio, e sem pensar, como ainda o faço hoje. De Siddhartha resta-me um pequeno Buda branco (ligado ao conhecimento) meditando na minha mesa de cabeceira (li, demasiado novo, O Lobo das Estepes, e não o entendi). Ainda sonho com uma viagem à Patagónia, ou mesmo ao Pólo Sul, seguindo os passos de Chatwin ou do capitão Scott. Easton Ellis foi talvez o mais revelador: a vida pode ser um bela merda, vazia, errática e confusa. Mas também alucinante, por vezes. Nenhum livro mudou a minha vida! A vida é, ela mesma, todos os livros bons e maus que me passaram pelos olhos. E, se ainda ando atrás de outros sentidos, acabo de ler a Louise Glück a dizer que os paus não pertencem à Alissa mas sim ao cão. O que, uma vez mais, não faz diferença nenhuma. Ou talvez sim.
Santa-Rita Pintor ou um exemplo de um artista vaidoso e execrável Figura mítica da primeira geração de pintores modernistas portugueses, a sua obra permanece em grande parte envolta em mistério. Nunca expôs em Portugal, mas esteve vários anos em Paris garantindo, com Amadeo de Souza-Cardoso, a primeira ligação efetiva às vanguardas históricas do início do século XX; e foi o mais ativo impulsionador do breve movimento futurista português. Morreu prematuramente, antes mesmo de completar 29 anos de idade, vitimado por tuberculose pulmonar, deixando ordem expressa para que todos os seus trabalhos fossem queimados; da sua obra da maturidade resta uma única pintura e um conjunto de reproduções rudimentares, a preto e branco, nas revistas Orpheu (1915) e Portugal Futurista (1917). Excerto retirado da Wikipédia
Da ilusão e da arrogância de estares certo que és o produto de ti mesmo Se tudo está divido em opostos porquanto insistimos em classificar, comparar, por em contraste, o mundo deveria ser uma equação perfeita e nada pesar na balança nem mais nem menos do que aquilo que está à sua direita ou à sua esquerda. Mas, o todo é feito de metades – imperfeitas por si só – a exemplo das mãos. Uma sacrifica-se mais do que a outra, se esta aponta a outra abstém-se, a noite pesa mais do que o dia embora seja sob a luz do sol que nos fatigamos e a humanidade teima em oprimir-se a si própria, sem apelo nem remorso, porque, malogradamente, se dividiu em duas. Daqui que os gestos, que temos por nossos, mais não sejam do que reflexos das partes em que tudo se decompõe. E ignoramos quais mesmo acreditando na vontade, no arbítrio e no amor porquanto a primeira está tão condicionada pelo mundo, o segundo por limites que não são os nossos e, por fim, só amamos, afinal, aquilo que desconhecemos ser. O gesto, pois, não vai além de uma sombra, uma projeção no vácuo, um simulacro do que está oculto. O que vive por detrás da imagem refletida no espelho à nossa frente e que nos devolve o olhar com outra interrogação e a mesma perplexidade.