aunreliable narrator

escondido atrás do computador e rodeado de livros de poesia, apenas e só livros de poesia, poesia não completa, claro está, dada a impossibilidade óbvia de alguma vez a poesia se completar. escondido e matreiro, de olho afinado perscrutando o fio azulado do fumo do cigarro e a lente amarelecida do redondo do copo de uísque. o que você procura é aconselhamento editorial, coisa rara e difícil nos dias que correm, e caro, se quer que lhe diga, sem rodeios. mas faz-se. se o conhecesse de algum lado até lho fazia de borla. e, já agora – depois de uma virgula breve -, tire aquele livro das mãos do seu filho que aquilo é um bocado pesado para a idade dele, não vá sair daqui com má impressão da casa. ah, sim, indecente. há por aí muitos autores sem pinga de pudor e isso lê-se no que escrevem. dê-lhe antes um Tolentino, mais adequado, beato e filosófico, bom para idade dele. uma garrafa de uísque com um rombo no estômago meio disfarçada por entre a perna da personagem e a perna cambada da secretária, cabelo branco e desgrenhado de um lado e do outro do ecrã, excessos do narrador no qual, de todo, não confio, rancor, semblante banhado de luz azul. mas quanto? – pergunto. o cabo dos trabalhos. trabalha muito nisso? responde sem prudência ou singeleza: sou um escravo do trabalho, não vê a quantidade de livros que aqui estão? mas, sim, faz-se. tem uma listinha de por onde andou? sim, a listinha de por onde andei em busca de aconselhamento espiritual, anímico, existencial para o meu livro, não sabendo ainda que isso já tinha um nome. as histórias que os nomes nos escondem, afinal. estendo-lha – a listinha -, pega-lhe e, de relance, faz que a lê. que canseira. devia ter logo vindo ter comigo. sai de trás do computador. pela primeira vez atravessa a cortina estriada do fumo do cigarro e abandona o uísque à sua sorte. então deixe ficar. falamos do preço? – insisto. deixe ficar, não se preocupe por agora com isso – insiste. os dedos amarelos do uísque e dos cigarros estendidos para o manuscrito. o que faz meia hora de conversa. o que faz a inexequível disposição de acrescentar poesia à poesia que se não completa.

con-sentimento


esta é uma parábola
de um fotógrafo
de um poeta
do homem.

um fotógrafo queria fotografar
mas não tinha coisas bonitas ao seu redor.
perguntou a um fotógrafo mais experiente:
o que vou fotografar?
fotografa o que há à tua volta, fotografa as coisas feias.
(eu, se calhar, diria, as coisas vulgares).
E das coisas vulgares criou arte
tornando-se muito famoso.

O poeta escrevia coisas bonitas
sobre flores, sobre o amor,
sobre o cheiro das mulheres elegantes
sim, sobre o cheiro dessas, só dessas
nunca escreveu acerca de mais nada.
teve sempre receio de versar o vernáculo,
o vulgar, o que não tem cheiro.
haviam-lhe dito:
– poesia é com sentimento!
– consentimento?
– não! com sentimento! – assim separado, como se diz.
este poeta morreu triste
e esquecido
por a nada mais se ter consentido.

o homem é muito mais complexo.
dizem-lhe todos os dias:
– olha para estas coisas feias.
– mas…, não há coisas bonitas?
– haver há, mas tens de te habituar às feias.

e tanto olha para as coisas feias
que as vê como vulgares.
nem uma fotografia, nem um poema,
nem um coração para as enaltecer.
em suma, nada com sentimento,
apenas consentimento – assim, pegado, como se diz.

desta forma caiu o Tibete,
assim caiu Varosha,
cai Gaza, cai a Ucrânia, todos os dias,
amanhã Taipé (como sonha Jinping).

25-04-2024

nasci em novembro
em abril – nesse abril – tinha cinco anos
é só fazer as contas.
no Verão quente de setenta mais cinco,
quero dizer, no rescaldo desse Verão, fui para escola
perguntara-me o partido do meu pai
– nem sabia –
o meu é do MRPP e vai lá à tua casa matar o teu! 
a escola era um casebre e dois anos depois já não existia
Otelo foi preso
vi um dos capitães de férias na praia
Salgueiro Maia, entretanto, faleceu.
nunca peguei num cravo, muito menos o coloquei na lapela
abril, para mim, foram os amigos retornados que fiz
a namorada retornada que vim a ter
a mulher, retornada, com que casei, pouco mais.
nunca liguei muito ao mês de abril, a esse abril, confesso.
nem à liberdade, dado adquirido,
nem ao voto, dever muitas vezes esquecido,
nem à política, terreiro corrompido.
passaram cinquenta anos,
tenho agora… bem, é só fazer a contas.
vai dizer-se quanto abril foi deplorado
quão importante é não nos esquecermos de abril
há que resgatar abril, enaltecer abril, salvar abril!
o meu pai morreu – não foi morto,
Otelo foi traído pela cabeça e pelo coração, 
Maia pela mais invencível das pestes.
estão todos mortos…
exceto abril que prevalece.
para alguns pode ter apenas cinco anos,
para outros as décadas todas
significar muito, tudo ou quase nada.
mas para mim, para bem e para o mal, sem abril – esse abril –
não te teria ao meu lado.

Paris revisited

há mais pó nas Tulherias neste outono. a estação seca alonga-se até ao Sena. por baixo das pontes a luz dourada afasta-se e curva-se sob os arcos. deixo um Mallarmé fora do sítio nos bouquinistes, que não arredam pé para abrir espaço às Olimpíadas de 2024. moi, flaneur, sem sinal de GPS, perco o sul e o norte na cidade grande que se ilumina na idiossincrasia da psicogeografia. a rive gauche acompanha-me sempre, sempre à minha direita. mais abaixo tenho miragens dos Amantes loucos da Pont-Neuf. há poesia em todos os sítios, nas folhas das árvores caídas pelo chão, nas folhas de papel ácido amarelecidas que se desfazem ao vento. quero livrar-me das palavras que me acompanham desde o verão. vivem debaixo da minha pele como crisálidas de olhar fascinado. não quero dizer nada, nem sequer soletrar “poesia”. estugo o passo, apresso o final do dia. as cadeiras de metal, ao relento, fazem companhia a candeeiros solitários. ao crepúsculo tudo mergulha numa sinistra concórdia. do Luxembourg rumo ao Champ de Mars e chego ao Grand Palais Éphémère. aqui decorre, por estes dias, a Paris Photo, a grande mostra do imaginário retinal contemporâneo. uma escola do efémero (e nunca mais deitam abaixo aquele horrendo pseudo palácio que mutila a vista da Torre Eiffel). já disse, não quero dizer nada, muito menos soletrar “poesia”. deixo o olhar divagar pelo centro esférico os quadros, tudo/todos menos Instagram: mais poesia, afinal. poesia sem palavras (nada há para soletrar), mas não deixa de ser poesia. isto é uma doença que alastrou por todo o lado, confirmo. as crisálidas são monstros que vivem. o olhar revê-se no seu próprio fascínio. mas efémera, insisto. esta há de morrer, convenço-me. tão, tão efémera, como o Grand Palais que um dia hão de demolir.

chuva

depois da chuva
volto a ti
para fundar as raízes no solo

respeito o vento
e o voo insustentável da ave
que sossegou pelas cinco

a serenidade da seiva
flui sobre a pele
como o crepitar de um lume

tens as mãos quentes
da espera e o corpo branco
repousa nas águas

o céu limpo
ilumina-se e apaga-se

aconchego-me na terra
durmo o mais fundo que posso.

memento mori

tenho um pintassilgo com um chapeuzinho escarlate preso a um poleiro por uma finíssima corrente de prata. sou o homem de coração pequeno que lhe perpetuou o cativeiro até à manhã em que não mais cantou, apesar de ter, depois disso, vivido ainda por uns tempos.

sou o mesmo homem, prático, que o mandou empalhar assim que morreu.

e quiçá, cuidadoso e perspicaz, que bem cedo cuidou que a desafortunada ave canora teria, por imposição natural, existência breve. gravou por isso, ainda em bom tempo, o fresco canto matinal que por ora não se cansa, nem se priva de ouvir.

o pintassilgo já não se move quando canta, é certo, mas o trinar flui por toda a casa e ilumina de felicidade o rosto do homem. O mesmo se poderá dizer de vários homens e mulheres em redor.

como podemos pois, declinar as contradições da vida, se estamos vivos e amamos mesmo com o coração de um morto?

deserto

na confluência morta dos dois rios construiu um castelo de barro, sob o céu implacável do deserto. até dezoito milhas para cada lado cardos e catos gigantes abrigavam do sol inclemente lagartos magros e coloridos. ali criou formas tridimensionais para a sua arte. ali, admirou o céu noturno puro e imponente. amou a mulher que escolheu amá-lo e, pelas manhãs, alimentou-a à boca com o fruto da sua própria boca. o castelo cresceu por dentro em inteligência e memória. as paredes ganharam a patine do tempo que passou com a medida certa do tempo certo. quando chovia – e raramente chovia – o deserto enchia-se de flores. do solo crestado não brotavam plantas, apenas flores. sabia que a uma dada altura iria morrer. aceitava o quanto vivera. mandou, no interregno, selar um casulo – ou túmulo, se usarmos a terminologia dos mortais – e, um dia, estendeu os dedos para o vértice das veias secas no solo. aguardou então pela chuva, e pelas flores, e pelo renascer do deserto.

bibliofagia

expoente máximo do romantismo inglês o palácio ruía sob a sua própria ostentação. nele vivia o seu último habitante, James Cook, vigésimo Earl of Sussex. homem que durara sete vidas, sete casamentos, sete paixões. a mais feroz das quais, a literatura. dono de um intelecto febril, de uma memória monumental e de uma infinita eloquência. dizia poemas com a intensidade de labaredas, deslindava ao pormenor os dias dos grandes poetas, atemorizava com o seu semblante de aço quem desdenhasse da escrita. haviam porém transitado os seus melhores dias e, sozinho no palácio, corriam rumores que enlouquecia. no entanto, talvez a sua maior tragédia, estava quase cego. restavam poucos, quase nenhuns móveis. a cama fora colocada na biblioteca pois ali passara a dormir. também a mesa da sala de jantar e as bagatelas que restavam. os ecos moravam nos salões e corredores abandonados e apenas na sala dos livros se escutavam os últimos estertores humanos. no dia 23 de abril levou à boca o seu primeiro livro. tentou devorá-lo com avidez, mas foi-lhe impossível. durante dias roeu-o pacientemente, com prazer, até nada restar nas suas mãos. e assim, foi fazendo com os outros. devagar, devagar, deglutiu os livros pela ordem do amor que tinha por eles. Alighieri, Racine, Mallarmé, Zola, Pessoa, todos, todos sucumbiram, um a um, a esta fome magnifica. até quase nada se distinguir: a pele seca e amarelada de Cook do papel húmido que se misturava com a saliva; a cola velha e espessa que corria com relutância nas veias; as linhas que cosiam os cadernos transfiguradas nos tendões cada vez mais tensos do cadáver anunciado. por fim, a um palmo das mãos de James, jazia o último e menos amado dos livros. mas tanto, tanto que o tentara amar tal como aos demais. esse miserável, bastardo e nojento arroto de Hamsun. fome, continuava a ter muita fome. uma fome já impossível de saciar, sabia- o. e assim, renunciando ao maior dos seus fascínios, comeu metade e lançou o resto do volume à lareira. fechou de seguida os olhos. talvez tivesse chegado o tempo de descansar. talvez, logo que sentisse o calor da última página a consumir-se, o palácio se desmoronasse e tudo caísse no esquecimento.

Dário Agostinho, março de 2023

Texto publicado na revista “Espúria”* de maio de 2023. Vários autores.

* Tenho muito orgulho de ter sido convidado e fazer parte deste projecto.

novo homem


Zarathustra desceu a montanha.
a águia e o leão seguiram-no em silêncio.
há uma guerra a leste, disse por fim o leão.
quando entraram na praça da cidade encontraram um asceta descalço.
o bastão bramia e agitava o ar.
tinha os olhos vermelhos e soltava palavras como chispas de fogo.
Zarathustra disse que deviam continuar.
o lugar deles não era ali.
depois de muito caminharem sobre a terra ouviram ao longe o som de trovões.
a águia levantou voo e quando regressou contou que mais à frente os homens se banhavam em sangue.
continuaram até à cidade seguinte.
metade estava de pé, na outra metade não restava pedra sobre pedra.
Zarathustra sentou-se no chão e orou virado a ocidente.
no dia que se seguiu deu o seu sermão voltado a oriente.
o bastão permaneceu inerte, pousado no pó, silente.
o leão vigiava o lado intacto da cidade.
a águia perscrutava do alto as planícies em redor.
e assim, aguardaram durante muito tempo, pacientemente,
pelo homem novo que havia de erguer-se das cinzas.

Dogma 23 | Os Votos de Castidade de Lars von Trier adaptados à fotografia

Lança a ti próprio um desafio. A IA está aí e, ao contrário da automatização, que tornou obsoletas e já eliminou inúmeras profissões, desta vez as pessoas começam a ficar assustadas. É uma boa altura para uma reflexão coletiva acerca de onde viemos, onde estamos e sobretudo, para onde vamos, ou melhor, para onde queremos ir. Enquanto ainda sentimos algum domínio sobre a máquina não nos importámos de tudo alterar, corromper, prostituir. Andámos, sem qualquer peso na consciência, a afastar-nos da essência, da simplicidade, da verdade. E agora, não sentes uma angustiante falta da verdade?

Este exercício não sei se alguém já o fez. Não tive essa preocupação. Não fui à procura. Estou inocente. Não há qualquer plágio aqui. Trata-se de uma adaptação à fotografia do famoso manifesto de Lars von Trier que foi criado para o cinema.

E, eu não definiria/escreveria melhor o que se pretende do que o chatbot ChatGPT (ressalvo contudo que limpei/corrigi o texto):

Estas regras foram projetadas para promover uma abordagem despojada e não alterada da fotografia e para incentivar os fotógrafos a capturar o mundo ao seu redor de maneira honesta e autêntica. Aderindo a estas regras, os fotógrafos podem criar imagens realistas e que capturam a essência de um momento ou lugar sem distrações ou artificialismos.

Vamos chamar-lhe, simplesmente, Dogma 23:

  1. O fotógrafo deve fotografar in loco. Não são permitidos estúdios ou cenários artificiais.
  2. O fotógrafo não deve usar quaisquer efeitos especiais ou filtros. As imagens devem ser capturadas exatamente como aparecem à sua frente.
  3. Deve ser somente utilizada a luz disponível, quer natural, quer artificial. Não é permitida iluminação adicional ou o uso de flash.
  4. A câmera deve ser utilizada nas mãos. Não é permitido tripé ou qual outro tipo de apoio ou estabilizador (devem ser inclusive desligados, se existirem, os estabilizadores do corpo da câmera e/ou da objectiva).
  5. O fotógrafo não deve adicionar nenhum texto ou legendas às suas imagens (não devem se explicadas ou contextualizadas).
  6. O perfil de cor das imagens (cor ou preto e branco) deve ser definido antecipadamente e não pode ser alterado durante toda a sessão.
  7. O fotógrafo não deve usar nenhum software de pós-processamento ou de edição para aprimorar ou alterar as imagens.
  8. A imagem deve ser apresentada no seu formato original, sem qualquer corte, redimensionamento ou alteração do rácio de aspeto nativo da câmera.
  9. O fotógrafo não deve utilizar nenhum adereço ou modelo nas suas imagens.
  10. O fotógrafo deve acima de tudo procurar a honestidade e veracidade, renunciando à artificialidade e ao logro.